A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

Zé Maria
Zé Maria, atuou no futebol italiano e espanhol. Foto: Museu do Futebol.

Quais são seus planos para o futuro agora você está no Brasil e os filhos estão estudando? Para você e sua família, de um modo geral, o que vocês planejam?

Eu voltei pro Brasil porque eu tive o convite de um clube de Campinas pra treinar, só que devido às confusões e dificuldades que este clube está atravessando eu não acertei com eles. Só que minha família já tinha vindo comigo, porque aonde eu vou minha família vai. Meus filhos já estavam inscritos na escola, mas o tempo foi passando e eu não acertei com esse clube. A minha ideia ainda é voltar pra Europa, treinar uma equipe na Europa, na Itália ou na Espanha, e voltar por tudo aquilo que eu estava falando dois segundos atrás. Mas voltar com uma estrutura, você tem que ter um trabalho, tem que ter uma coisa por trás pra você. Eu vim pro Brasil, se tiver alguma coisa do ponto de visto de trabalho como treinador, que foi pra isso que eu me preparei lá na Itália, eu fico no Brasil sem nenhum problema. Sempre dentro desta tensão que a gente tem que é viver no Brasil. Mas a minha ideia é voltar e treinar uma grande equipe da Europa, da Itália. E eu sei que eu vou alcançar isso se Deus quiser.

Pensando de um modo geral nesse teu movimento migratório, de sair do Brasil ir para a Europa, qual balanço você faz disso tudo?

É complicado fazer um balanço, é muito difícil você sair de um lugar e ir pro outro. Estou fazendo uma mudança esses dias, é complicado. Quando você faz de um país pro outro é mais complicado ainda. Os filhos sofrem muito. Meu filho menor falou “Pai, agora que eu to me adaptando aqui, que eu to fazendo amigos, a gente vai embora…” Dói muito quando escuta um filho falar isso. Aí tento explicar pra ele o porquê que a gente ta fazendo isso. Eu acho que o que eu pude dar, o que minha esposa pode dar pra eles, foi a possibilidade de aprender duas línguas diferentes, porque eles aprenderam espanhol e italiano estando lá. Uma coisa é você aprender estudando, fazendo um curso, mas eles viveram lá, um 11 anos e outro 14 anos, e um ano na Espanha, continuaram a estudar o espanhol, falam também perfeitamente o espanhol e lá se estuda muito inglês nas escolas. Na escola aqui eles têm muita dificuldade no português, mas no inglês eles não têm problema nenhum, e desse ponto de vista pra mim o balanço foi positivo. Foi meio negativo porque você não consegue criar um ciclo de amizades, você não consegue. Fiquei seis, sete anos no mesmo lugar e tenho amigos? Não tenho, eu tenho conhecidos, colegas, amigos mesmo não tenho, mesmo porque você não pode nem criar esse grau de amizade porque depois você não consegue largar. E eu sei que na minha carreira eu posso estar no Brasil hoje, na África de novo, na Europa de novo. Eu não pus como objetivo só estar na Europa ou só estar na Itália, meu objetivo é ser um treinador de grandes equipes, e isso passa pela Itália, pela Espanha, passa pela Europa, pela África. Tive um convite recente pra treinar uma equipe na África. Eu sei que se eu criar um vínculo muito forte com as pessoas fica muito difícil depois largar, porque largar um amigo de verdade é complicado.

Pensando nesta nova fase de treinador em que você esta em busca, como que foram suas relações com os treinadores que você teve contato na sua carreira?

[Risos] Algumas vezes eu era muito genioso. Eu sempre tive uma personalidade forte. Outro dia escutei: “O Zé Maria é muito tranquilo pra ser treinador. Você nunca foi um líder na frente das câmeras”, falei “Nunca fui um líder, mas dentro do vestiário sempre fui uma pessoa que tinha uma palavra muito forte”. E com os treinadores era isso. Fora do campo eu sou obrigado a fazer aquilo que o treinador me pediu, sou obrigado a aceitar aquilo que ele falou, porque se não é uma coisa muito chata. Mas dentro do vestiário você é obrigado a falar a verdade, se não você não consegue resolver seus problemas. E com alguns, foi relação de amor e ódio, já briguei, discuti com treinador, e no outro dia via que ele era meu amigão. Essa amizade dentro do campo, dentro do vestiário, só fortalece se você é sincero, se você é falso, o jogador percebe, o treinador percebe. Então se você fala uma coisa e mantém aquilo que você fala, a pessoa te segue naquilo. Com esse treinador que eu já briguei, a primeira reunião técnica que a gente fez na minha volta pro Perugia, jogando em casa contra o Lecce, empatamos 2 a 2, teve uma reunião técnica que ele gostava de fazer, todo mundo deu opinião e eu falei: “Cara, você errou em tudo”. Ele não esperava, tava todo mundo falando bem… “Eu não to falando mal. Você jogando em casa com um time pequeno, você tem que ganhar daquele time pequeno. Então pra mim você errou”, fui sincero com ele. Não quis agradá-lo porque ele é o treinador. Dentro do vestiário tem que lavar a roupa suja. É aquele momento que o treinador te dá a oportunidade e você tem que falar, se não você fica corroendo aquela coisa dentro de você e não é bom, você não pode ficar com esse clima dentro de você. Já presenciei uma reunião, também no meu primeiro ano de Parma, com o Ancellotti no Parma, que no nosso vestiário tinha só fera, e ele falou assim, a gente tava em penúltimo no campeonato italiano de 96 – 97, era um time criado pra ganhar o campeonato. Tinha o Bufon, que estava subindo, Zé Maria, Turran, Canavarro, Benariva, essa era a defesa do Parma. Poxa, a melhor defesa do mundo. E era penúltimo no campeonato. Aí ele falou: “O que tá acontecendo?”. Aí um virou assim e disse “A culpa é tua. Você não vale nada, não sei o que…” começou a xingar o cara na vida pessoal. Ele escutou e disse que ia tentar mudar. Você vê a diferença, o outro treinador queria brigar. Aí um outro falou “Eu acho que você tem que colocar uma coisa tua. Você copia muito o Sacchi”, que tinha sido o treinador dele, “Ah, você acha isso?” Nós fomos vice-campeões aquele ano. Estávamos em penúltimos e fomos vice depois daquela reunião. Não perdemos mais nenhum jogo. Não ganhamos o campeonato por um erro do árbitro, que a gente estava ganhando da Juventus de 1 a 0 e o arbitro deu um pênalti a 1 metro a área, a Juventus empatou e acabou o jogo. Depois nós ganhamos outros 2 jogos e a Juventus ganhou seus dois jogos. Mas ali eu peguei como exemplo aquele treinador como um cara sério, que chegaria longe. Depois foi campeão da Europa, foi campeão não sei quantas vezes com a Juventus, um cara que aceitou as críticas, não reagiu de uma maneira negativa. Eu já tive discussões com ele – “eu cheguei do Brasil no dia 2, a gente jogava dia 6, você não me pôs pra jogar.” Isso foi em 98, e eu tava falando de 97. “Porque esse ano o Sensini fez a mesma coisa, chegou um dia depois e você pôs ele pra jogar?” “O Zé, perdão cara, errei. Você tem razão”. Então era um cara que sabia levar muito o grupo e tinha humildade de reconhecer o erro. Eu pego ele como exemplo, um treinador tem que ser assim, não pode estourar. Não pode ser estilo ‘eu mando e você obedece’, porque o jogador não é assim. Depois dá três rodadas ele te põe pra fora. Isso foi uma coisa que eu levo pra mim, meu exemplo de treinador é o Ancellotti. Excelente treinador na parte tática, técnica e tem uma parte psicológica muito boa. Sabe admitir um erro quando está errado, sabe impor as ideias dele quando ele é convicto daquilo, e sabe levar um grupo. E não é fácil você levar um grupo de 25 jogadores.

No Brasil havia espaço pra esse tipo de conversa com os treinadores que você teve contato no clubes?

Eu tive seis meses, mas uma pessoa que eu adorei trabalhar foi o Paulo Autuori. É uma pessoa que te dá liberdade de conversar, é uma pessoa que até provar o contrário, ele te apoia. Uma pessoa muito aberta, sincera. A gente na concentração batia altos papos, conversava na boa. Ele é um que admite erros, é o mesmo estilo do Ancellotti, uma pessoa que eu tive contato pouco tempo, mas eu admirei muito. E os outros são mais diferentes. Na minha última passagem pela Portuguesa tive uma experiência extremamente infeliz com meu treinador. Não era um cara que abria espaço pra nada, era do estilo faz aquilo que eu to mandando, eu to certo e você ta errado. Um treinador não pode ser assim, não pode ter esse tipo de comportamento, de autoridade. Você tem que conquistar. Se você conquista a confiança do jogador ele te dá tudo. Se não é assim ele te derruba no outro dia. É um fio de cabelo. Você depende muito do que o jogador pensa de você. A hora que o jogador fala que você não vale nada, você caiu no outro. Mas se ele confia em você, ele te dá a vida.

E os jogadores se organizam algumas vezes nestas situações pra tirar o técnico que eles não querem, é algo declarado?

Alguns são declarados, alguns não. Têm uns que sabem fingir bem, que faz um gol contra sem você perceber que era de propósito. Tipos de comportamento que o cara começa a fazer, a minar o seu campo fora do terreno de jogo, vai falar com diretor, com torcedor, com fulano, e na sua frente fala que você é o melhor do mundo. Tem aqueles caras que falam “Não gosto de você”. O Romário era assim, o Edmundo era assim, outros jogadores também. Eu gosto muito dos dois porque eles eram caras que falavam a verdade. O Edmundo falava na cara “Não gosto de você, não fala comigo”, companheiro de time dele! Um cara sincero, não ficava fingindo, e o Romário igual. São essas pessoas que valem a pena perder um tempo conversando.

E em termos táticos você aprimorou muito seu conhecimento nesses 11 anos na Europa? Agora que você volta você traz na bagagem um conhecimento muito maior nesse sentido?

Em uma entrevista há pouco tempo me perguntaram sobre o curso que eu fiz. Nesse curso praticamente te ensinam tudo sobre a parte tática e física, o que é a base do futebol italiano. Tecnicamente o italiano não é tão bom quanto o espanhol, mas taticamente e fisicamente eles dão baile nos espanhóis. Eu falei que eu quis fazer esse curso porque eu queria aprender. Quando a gente para de jogar, acontece muito isso no Brasil: “Parei de jogar e agora posso ser treinador, já me sinto capacitado pra ser treinador”. Você fazendo esse curso você acha que não entende nada de futebol. Pra mim era só mandar correr, xingar, apitar e o cara tem que te obedecer. Mas tem muitas coisas, você tem que aprender alguns posicionamentos. Dentro de campo você faz o seu. Eu não sei o movimento do atacante, porque nunca fui atacante. Você tem que saber como seu atacante, seu zagueiro tem que se posicionar em determinadas situações de jogo. E no Brasil usa-se muito o coletivo e o rachão. Coletivo tático, você para a jogada, posiciona seu time e vai embora. Então essa é a parte tática do brasileiro. O italiano não faz isso, parte tática é você posicionar o time, você põe onze contra o goleiro adversário, você põe outro time parado no meio do campo, ou você põe algumas barreiras, bolas paradas, várias coisas pra se fazer na parte tática que no Brasil não se faz, aqui é completamente diferente. A intensidade dos treinos no Brasil e da Europa é uma coisa completamente diferente uma da outra. Na Europa você vai a 200 por hora, aqui no Brasil se você vai a 50 você tá bem, porque “Poxa, não posso dar tudo no treino, tenho que dar tudo no jogo”, e não é isso. O futebol é um teatro: você se prepara durante a semana pra se exibir no espetáculo, no show. O show é o resultado daquilo que você fez durante a semana, as provas. O nosso futebol é assim, se você treinou a 200 por hora você vai jogar a 100 por hora, você tem uma margem muito grande ainda. Você não pode de 50 chegar a 120, você não vai chegar. Você pode descer de 200 pra 120, pra 100, que você ta num ritmo muito mais forte. É o que acontece quando um brasileiro vai jogar com um time europeu na final do mundial. Se você ver a final, você vê no final do jogo, o cara ta exausto porque ele correu muito mais, já o europeu já esta muito mais acostumado. Já é o ritmo dele, acaba os dois cansados, mas o brasileiro muito mais que os outros.

O Corinthians ganhou o Mundial dando um chute a gol e correndo o triplo do Chelsea, que pra mim foi o pior time que já chegou a uma final da Champions League, passou pelo Bayer e pelo Barcelona. Poderia ter chego um dos dois e seria uma outra história contra o Corinthians. Mas a parte tática do futebol brasileiro tá muito atrás. Porque não é da cultura do brasileiro. Eu preparei minha tese sobre a parte tática do Brasil. Nas 5 vezes que foi campeão do mundo eu não vi nenhuma parte tática. Vai lá atrás em 58, se dependia muito do Garrincha, Pelé, Didi, Vavá, então você tinha muita qualidade técnica. E parte tática zero. Quando aqueles caras tocavam na bola era meio gol. Aí em 62 era mais ou menos o mesmo time, mudou quase nada. Em 70 também era a seleção considerada mais forte de todos os tempos, colocava Pelé, Rivelino, Gerson, Tostão, põe pra jogar esses caras eles sabem o que fazer com a bola. Quando o Brasil quis usar a parte tática, na Copa de 90, se atrapalhou todinho, deu aquela confusão toda com o Lazaroni que o Brasil não sabia como jogar, onde tinha que jogar. Em 94 o Brasil jogou com dez jogadores lá atrás e o Romário lá na frente, que resolvia tudo. Isso não é parte tática, se eu falar isso eu estou blasfemando no Brasil, mas é bem por aí. O Brasil ganhou muito com a individualidade de cada jogador, foi o Romário que resolveu em 94. 70, 62 e 58 era a qualidade de cada um dos jogadores que tinham. Eles perguntaram: “Porque o Brasil ganhou estas 5 Copas e a Itália tem 4?” A Itália depende muito do conjunto, o Brasil depende da individualidade. Falei “Cara, não vou saber te explicar, posso falar o que aconteceu”. Uma pergunta que surgiu quando eu estava discutindo a tese é “Onde o Brasil ganhou na Copa de 70, que foi a final contra a Itália?” Eu falei “porque a Itália marcava individualmente, o Brasil mais esperto desse ponto de vista tirou um lateral de lá, veio outro por trás, o Carlos Alberto fez o gol. Foi isso o que aconteceu”. Foi a única vez que o Brasil estudou aquilo que a Itália fazia, mas o Brasil não jogava de uma maneira tática, jogava com a qualidade, só que com a nossa esperteza, demos uma olhada no comportamento da Itália, fez um movimento e o gol. A Itália já vinha preparada pra isso, o Brasil improvisou aquilo. Essa é a diferença da parte tática.

Qualidade técnica o Brasil vende, mas precisa comprar a parte tática mas não quer comprar. Tanto é que o brasileiro quando vai pra Europa tem muita dificuldade. Você vê o Lucas que é um dos melhores jogadores do Brasil tá sofrendo muito. Um dos problemas que falam tanto do Neymar é que ele não vai ser o que foino Santos porque não vai ter espaço. Nas vezes em que o Brasil joga com equipes europeias, quando joga o Neymar, o tipo de marcação que tem, como ele sofre, é um excelente jogador, não se discute isso, mas tem que aprender outro estilo de jogo, outra cultura.

Zé, foi difícil para de jogar?

Não. Não porque quando eu comecei a jogar futebol minha ideia era parar com 34 anos. Naquela época se parava com 34, hoje se para com 40, 41 anos. Eu tinha como exemplo o Cristóvão, que era um dos mais velhos do grupo. “Eu to parando, 34 eu paro”, e ele era meu companheiro de quarto também. Eu pensava “Poxa, acho que vou parar com 34 também, To com 17, vai dar 17 anos jogando, é muito tempo” Eu fui crescendo, evoluindo aquela ideia, com 35 anos eu parei, parei um ano depois. E parei. “Ah, vamo jogar bola”, “Vamo, vamo brincar”, aquela coisa de brincar um pouquinho e depois tomar uma coca-cola, brincar com o cachorro, brincar com os amigos de vez em quando. Faço muitos jogos beneficentes, mas nunca me deu aquela vontade de voltar a jogar futebol. Vejo algumas coisas que me fazem pensar que deveria ter jogado até os 40, algumas coisas que hoje é difícil. Na minha época cada time tinha 4 ou 5 jogadores que faziam a diferença, hoje é difícil encontrar um em cada time. Vejo alguns erros grotescos que alguns jogadores fazem jogando na minha posição e eu falo “Isso eu não fazia não e se fazia ninguém nunca me falou”. Mas não foi um trauma não, até porque era uma coisa programada. Tive também que fazer uma operação no joelho devido à contusão que eu tive no ligamento, fiz a reconstrução da cartilagem. Juntei tudo que tinha pra fazer e parei de vez. O médico falou que eu não podia mais jogar futebol, então eu resolvi parar. Acho que um jogador tem que saber o momento de parar. Eu vejo hoje o Zanetti, que foi um excelente jogador, já não tá no mesmo ritmo de antes, já vem as dificuldades, é mais lento. Eu não posso ver um ponta esquerda me driblando com tanta facilidade, se eu ver isso aqui não tá legal não, então para antes que aconteça isso. O Maldini na Itália também parou no momento errado, foi vaiado quando parou. Você vê caras que são história no futebol, não pode passar esse tipo de vergonha, você tem que ter – deu 35, 36 anos, é a idade ideal pra você parar. O ritmo é sempre mais frenético. Antes a gente corria 8 a 9 quilômetros por jogo, hoje já corre 16. Você tem que estar muito bem fisicamente. Eu com problema de joelho, psicologicamente já não estava tão bem pra continuar a fazer pré-temporada em cima de pré-temporada, ficar 15, 20 dias longe dos filhos, todo sábado ir pra concentração, voltar só no domingo a noite, se você ganha volta bem, se você perde volta chateado, acaba discutindo com todo mundo. Falei “não, não dá mais pra mim”. Aí juntei a vontade de ser treinador porque ser treinador é mais legal, você programa sua semana, você programa se vai ter concentração ou não, você que determina muita coisa. Então já não é tão estressante. Só que ai você percebe que tem que chegar uma hora antes do treino, uma hora depois, tem que fazer toda a programação da semana, tem que administrar jogador, torcida, diretoria, aí você fala “Acho que errei em alguma coisa também” [risos]. Mas já tô nela, fiz 17 de um lado, tem que fazer mais 17 do outro. Mas tá legal.

Zé, para terminar, a gente gostaria de perguntar duas coisas pra você. Primeiro se você faria tudo isso de novo na sua vida? E segundo, qual mensagem você gostaria de deixar pra gente?

Não tem mais nenhuma pergunta de reserva? [risos] Eu não me arrependo de nada do que fiz, não me arrependo de ter pulado a minha adolescência de um moleque mais normal, de ir pro cinema, ter namorada, essas coisas, não tive nem tempo pra isso. Faria muita coisa e não faria muita coisa, no sentido que hoje eu to passando muito mais tempo com meus filhos, principalmente com o de 11 anos, eu to curtindo muito passar esse tempo com ele, jogar bola, jogar beisebol, brincando, fazendo lição, o que eu não pude fazer com o meu de 20 anos porque eu estava viajando muito. O meu filho de 14 anos tem um trauma, ele não gosta de futebol porque, falando com a psicóloga, ele colocou o futebol como sinônimo de uma coisa ruim que levava o pai dele embora. Então isso pra mim foi a parte negativa. Um dia, depois de um mês que eu tinha ido jogar com o Parma, esse período que eu fui em 3 continentes diferentes, quando eu voltei pra casa ele chorou porque ele não me reconheceu, ele era novinho ainda. O que eu faria seria passar mais tempo com a família. Quando um jogador chega em casa vai dormir, fazer churrasco, você acaba deixando pra trás, ignorando muito teus filhos, tua família. Isso eu não faria de novo. Se eu tivesse que voltar no tempo passaria mais tempo com meus filhos, fazer lição com meus filhos, isso sim foi errado, porque é um tempo que não volta mais. Meu filho de 20 anos hoje está fazendo a universidade, o de 14 tem mais facilidade de conversar com a mãe do que com o pai dele, e eu sei que isso foi devido à minha profissão que me sugou muito mais do que eu poderia ter dado a eles. Depois que você para você percebe isso, na hora em que você tá lá no meio você não consegue perceber. Essa é a única coisa que eu me arrependo, o resto eu acho que foi uma carreira maravilhosa. Não joguei a Copa América, Olimpíadas, pré-Olímpico, joguei tudo o resto. Você não pode ter tudo na vida, foi um período maravilhoso, 17 anos fazendo um esporte que todo brasileiro gostaria de fazer, homem, mulher, criança, velho, todo mundo quer fazer isso. E eu fiz como profissão e como prazer, porque eu me divertia muito jogando, eu ia pro campo não pensando no dinheiro, mas pensando em jogar bem, me divertir. Toda vez que eu entrava em campo eu tinha esse pensamento, quando treinava, eu treinava pra me divertir. Não posso perder minha alegria. É aquilo que eu to fazendo porque gosto, e me pagam ainda por isso. Tenho duas vantagens, faço o que gosto e recebo por isso. Isso foi como eu enfrentava o futebol, tendo dificuldades dentro de campo com as contusões, fora de campo com a família, mas era minha grande paixão. É a minha grande paixão, tanto é que eu to na lateral do campo agora, mas sempre dentro do futebol.

Mensagem? Eu nunca fui bom em deixar mensagem pra ninguém. Mas eu acho que o projeto de vocês em ter esse tipo de experiência, fazer com que muita gente possa ver o que a gente fez, ou escutar o que a gente fez fora de campo, porque ninguém, muitas poucas pessoas fazem isso o que vocês estão fazendo. Eu aceitei o convite de vocês porque eu achei uma coisa maravilhosa. Às vezes as pessoas falam “Vou pra Europa, pra China, pro Japão, vou largar minha família, vou largar meu país” O teu país vai estar sempre aqui, não vai sair do lugar, seus parentes, hoje com os aviões em 12 horas você tá na Europa, 24 horas tá do outro lado do mundo, você pode estar sempre aqui. Hoje não se perde mais nada, mas uma coisa é você escutar, falar, você ver pessoas que fizeram isso, foram, voltaram, tem vontade de ir pra lá de novo. Conversando com o Amoroso, ele diz que se tivesse a possibilidade ia morar em Milão de novo, a mulher dele fala a mesma coisa. Não é tão ruim você sair do seu país e tentar tua vida fora, por um motivo ou outros, são coisas que você aprende, nova cultura, novo modo de viver, de enfrentar a vida, e você pode vencer. O Careca venceu, o Amoroso venceu, o Zé Maria venceu, graças a Deus. Apesar de todas as dificuldades, saudades, nostalgia, contusões. Vocês estão de parabéns por trazer resta recordação, essas experiências que foram pra maioria extremamente positivas, de viver em continentes diferentes com culturas completamente diferentes das nossas. E ter isso registrado é um tesouro que ninguém no mundo que fez, de ter o depoimento de pessoas que foram, voltaram e têm vontade de voltar de novo.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

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